quarta-feira, março 12, 2008

A SESSÃO DA TARDE E A HISTÓRIA DO CINEMA PAULISTANO - a evolução do entretenimento na sétima arte.


Nas suas origens nos anos 70 e 80, a Sessão da Tarde tinha um significado muito diferente do atual.


Se as novas gerações julgam que Os Goonies, O Rapto do Garoto Dourado, Curtindo a Vida Adoidado, De Volta para o Futuro, Karatê Kid. A Lagoa Azul são clássicos da Sessão da Tarde, eles estão certos.


Porém, desconhecem uma fase anterior da Sessão da Tarde, bem diferente da atual, ocorrida nos anos 70 e início dos anos 80.


Não existia VHS muito menos DVD, e TV paga era coisa de ficção científica. As salas de cinema tinham um conceito muito diferente do atual.


A localização das salas de cinema paulistanas era no centro da cidade, e havia algumas poucas nos centros regionais dos bairros. Ainda não existiam os Shoppings.


O tamanho e padrões de funcionalidade também eram diferentes. O público chamava pejorativamente as salas mais pequenas de “caixinhas de fósforo”, mas estas salas não tinham menos de 300 lugares – enormes para os padrões atuais.


As salas mais badaladas costumavam ser tão grandes que várias delas se orgulhavam de ter uma, ou até duas platéias suspensas além da platéia principal, que já não era pequena.


Recordo-me das inúmeras sessões de assisti nos anos 70 no extinto Cine Universo, localizado num dos principais clusters cinematográficos da cidade de São Paulo: a avenida Celso Garcia, na região central. Seus vizinhos eram o Cine Bruni (depois, Cine Brás), Roxy, Fontana I e II, Piratininga – hoje, num único shopping, você pode encontrar um número de salas muito mais elevado.


O Cine Universo era tão grande que possuía platéia suspensa e uma particularidade: teto solar com clarabóia circular; não recordo o tamanho com exatidão, mas acho que era algo em torno de 50 metros de diâmetro que era aberta em dias de muito calor, já que os sistemas de ar condicionado da época além de custosos eram pouco eficientes para grandes recintos.


Havia ainda as salas que se distribuíam pelos centros regionais de São Paulo, tais como o Amazonas na Vila Prudente, Ouro Verde e Patriarca na Moóca, Aladim e Japi no Tatuapé. Havia ainda cinemas nas regiões de Santo Amaro, Penha e Lapa entre outros.


Naquela época os lançamentos ocorriam em número bem menor que atualmente. Grandes produções da época como Superman e Guerra nas Estrelas de 1977 aconteciam apenas uma ou duas vezes ao ano.


Havia as sessões exclusivas, com filmes diferentes do principal em cartaz, as quais ocorriam no meio da tarde para atender o público infanto-juvenil. Eram as famosas matinês.


Os costumes da época eram bem diferentes. A censura moral era rígida. O juizado de menores fiscalizava com rigor as salas. Cenas hoje corriqueiras usadas até em comerciais exibidos em qualquer horário na TV aberta, como beijos ardentes ou moças de biquíni eram suficientes para se fixar a censura de um filme em 18 anos.


Na entrada, funcionários exigiam com rigor a apresentação de documentos de identidade aos freqüentadores. Como lei é lei, se você comparecesse na véspera de completar 18 anos, com certeza ia ter que voltar para casa sem diversão.


A fiscalização do juizado de menores (hoje conselho tutelar) era intensa e severa. Um flagrante podia ter conseqüências drásticas para a sala, que iam desde multas pesadas, interdição da sala ou mesmo a prisão dos proprietários. Isso sem falar que a ocorrência de um caso assim afastaria o público da sala, que seria classificada como “antro de imoralidade” ou “pulgueiro mal administrado”.


E pasme: ainda havia casos de limites de censura fixados em 21, ou até 25 anos, raros mas não impossíveis.


A rigidez da censura era tanta que há de se considerar tais fatores lembrando do fato de que filmes com cenas de sexo explícito ou de violência em alto grau de realismo eram coisa vista somente de forma clandestina, geralmente por fechados grupos de pessoas que possuíam recursos financeiros para possuir seu próprio projetor e acesso ao tráfico de material pornográfico, que era ilegal.


Para se freqüentar uma sala requintada do centro, como o foram os Cines Marabá, Ipiranga, Marrocos e Anchieta entre outros, era necessário estar “adequadamente trajado” – entenda-se: terno e gravata para homens e vestido abaixo dos joelhos e decotes discretos para as mulheres. Caso contrário, a entrada era barrada.


A decoração das salas de cinema mais badaladas era extremamente requintada, incluindo painéis artísticos nas paredes e primorosos projetos de design para ambientes internos de alto luxo.


Não podemos deixar de falar dos famosos lanterninhas, que eram uma espécie de recepcionista, geralmente uniformizado no estilo de atendentes de hotéis de luxo. Portava um farolete (daí o nome) e tinha por função recepcionar os freqüentadores e conduzi-los aos lugares mais confortáveis, ou acompanhá-los caso quisessem se ausentar da sala por algum motivo, para que não sofressem algum tipo de acidente e para minimizar o estorvo aos demais.


Durante as matinês, os lanterninhas se transformavam em bedéis que zelavam pela disciplina das crianças e adolescentes, garantindo uma exibição confortável e tranqüila sem estorvos, já que era comum grupos de adolescentes prepararem traquinagens que complementavam sua diversão no cinema, sendo as mais “clássicas”: o chiclete grudado na poltrona que sujava a roupa do próximo a se sentar ali, as bolinhas de papel atiradas nos espectadores mais concentrados, as vaias e versinhos sacanas cantarolados durante as cenas mais polêmicas.


As pessoas iam aos cinemas para ali ficar por pelo menos quatro horas ou mais, já que as sessões costumavam exibir dois filmes: sempre alguma reprise ou produção de segunda linha, seguida pelo filme principal. Além disso, as grandes produções dos anos 50, 60 e 70 costumavam ultrapassar três horas de exibição, como no exemplo de clássicos de estupendo sucesso como Ben Hur e Dr. Jivago entre outros.


Não somente a sessão era dupla, mas também no intervalo entre os longas eram exibidos curtas, geralmente de produção nacional dada a lei protecionista que a isso obrigava as salas. Nesta questão, é impossível não se recordar dos maravilhosos cinejornais do Primo Carbonari, em especial das suas espetaculares reportagens futebolísticas as quais até hoje são apreciadas.


Em resumo: o contato do público com a sétima arte era bem mais intenso e diversificado que hoje... assim como era bem mais controlado pelo poder público.


Era usual lançar mão das reprises, algo totalmente impensável para as salas de hoje. Por exemplo, eu cheguei a assistir por umas duas ou três vezes além do lançamento, a reprise de Guerra nas Estrelas no cinema, que várias vezes voltou ao cartaz em algumas salas nos dez anos subseqüentes ao lançamento.


Cheguei a assistir reprises nos anos 80 de filmes PB produzidos nos anos 50 e 60, como Marcelino Pão e Vinho e Dio Come Ti Amo.


Assim, para um filme ir para a TV, já devia estar “bem batido” no cinema; por exemplo, o megaclássico Os 10 Mandamentos dos anos 60 só foi para a TV nos anos 80, depois de ter sido reprisado a fartar nos cinemas... e chegou na TV não como um filme qualquer para tapar buraco num horário de pouca audiência, mas como uma super atração a ser exibida em data e horário especiais com forte aparato de divulgação.


Isso nos mostra como a força das obras cinematográficas era bem maior e menos banalizada que hoje.


Na segunda metade dos anos 80, o mercado cinematográfico começou a assumir novas características com o incremento dos meios de comunicação, o advento dos shoppings que alteraram significativamente o conceito de sala de exibição, e o surgimento do VHS.


O fim da ditadura militar afrouxou a censura, já que todo aquele aparato descrito acima tinha como objetivo mais a censura política que moral.


O advento da pornochanchada com sua pseudo-pornografia abriu as portas para a banalização do gênero sexo explícito que disparou em produções nacionais e depois estrangeiras.


O lançamento dos eróticos Calígula e O Império dos Sentidos nos anos 80, obras de conotação erótica, porém de sólido fundamento cinematográfico, serviram de argumento para os produtores nacionais obterem anuência do poder público.


Foi o início de uma época de radicais mudanças e de decadência nos formatos tradicionais das salas de cinema.


Para sobreviver, as salas regionais tiveram que aderir rapidamente sessões duplas de pornografia + produções orientais thrash que banalizavam as artes marciais, baixando significativamente o preço dos ingressos, atraindo assim um público composto basicamente de pessoas de baixa instrução e pouco poder aquisitivo, do sexo masculino.


As salas centrais conseguiram resistir um pouco mais ao fenômeno, mas não por muito tempo, inclusive incluindo em suas programações pseudo-espetáculos teatrais de sexo explícito ao vivo, ampliando a decadência e o alcance da famosa boca do lixo, região de prostituição do centro de São Paulo.


Após esta fase, muitas dessas antigas salas transformaram-se no final dos anos 80 em estacionamentos ou igrejas evangélicas, até terem seu projeto arquitetônico demolido ou modificado para outros fins.


As tradicionais salas Ipiranga e Marabá, na avenida Ipiranga, imediações da Praça da República no Centro Novo Paulistano foram as que mais heroicamente resistiram à nova tendência, estendendo até os anos 90 a oferta de uma programação de qualidade, incluindo lançamentos.


Explicado então como era o cinema da época, e visto um breve histórico das transformações no consumo cinematográfico, voltemos à Sessão da Tarde, cuja relação com o cinema está no fato de que ela era uma das principais alternativas para se ter acesso ao cinema a baixo custo, e sem os apelos e prazos de cunho comercial que o mercado impõe nos dias de hoje, dada a concorrência da TV paga, e do DVD, sucessor tecnológico do VHS.


Havia filmes famosos, que muitos desejavam assistir ou mesmo rever, pelos quais esperava-se pacientemente a exibição na TV aberta.


Sinônimo de "reprise da reprise da reprise", os filmes iam para a Sessão da Tarde só após terem sido exibidos pela primeira vez na TV nas noites de sábado, pontualmente às 21 horas. Era a sessão Primeira Exibição, que marcou época na Globo e pode ser considerada a precursora da sessão Tela Quente. A mudança de dia e horário ocorreu justamente por causa das mudanças dos costumes e no comportamento do público.


Desta fase à qual me refiro podemos destacar alguns clássicos - entenda-se, filmes exibidos e reprisados a fartar sem reclamação do público. São alguns deles:


As adaptações de Julio Verne: Viagem ao Centro da Terra, Volta ao Mundo em 80 Dias e Robour, o Conquistador.


As produções que exploraram o sucesso de Elvis Presley nos anos 50 e 60 como: Saudades de um Pracinha, Garotas, Garotas, Garotas, Feitiço Havaiano.


O Garoto da Bolha de Plástico, primeiro sucesso de John Travolta, então um adolescente anterior aos Embalos de Sábado à Noite e Grease.


No Tempo dos Dinossauros, um Jurassic Park dos anos 60.


Os pastelões de Jerry Lewis, o indiscutível inspirador do comediante Jim Carrey, em filmes como: Ou Vai ou Racha e Rabo de Foguete.


Infanto-juvenis que encantam gerações como: Ali Babá e os 40 Ladrões; longas de animação como Alakazan e O Príncipe e o Dragão de Oito Cabeças (Suzano), clássica adaptação de um conto japonês.


Algumas produções nacionais, especialmente as de Renato Aragão e os Trapalhões (na sua formação mais clássica), como Simbad e o Marujo Trapalhão e As Minas do Rei Salomão; infantis americanos como Os Cinco Mil Dedos do Dr. T. e O Mágico de Oz.


Tudo isso sem contar as dezenas de westerns como Assim Caminha a Humanidade e filmes de guerra como Tora Tora Tora ou raridades como A Lenda da Estátua Nua.


Clássicos que tiveram remake filmados recentemente, como A Máquina do Tempo, Pearl e... o considerado clássico dos clássicos da sessão da tarde: A Fantástica Fábrica de Chocolate.


Procurei muito e as citações desta época da Sessão da Tarde na web são raras. Talvez porque a geração que vivenciou isso, hoje com mais de 40 anos, infelizmente não está digitalmente incluída em sua maioria.


Enfim, estudar a história da Sessão da Tarde tranqüilamente daria uma tese acadêmica sobre a percepção do cinema e entretenimento no Brasil.


Douglas Gregorio::
Março de 2008.

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