segunda-feira, dezembro 27, 2004

O pentecostalismo - o outro lado da moeda

Resumo: o texto a seguir é um capítulo da dissertação de final de semestre apresentada no curso de mestrado em comunicação social da ECA-USP para a cadeira de cultura popular; o curso foi ministrado pelo Prof. Dr. Luiz Roberto Alves, atual secretário de cultura do município de Mauá na Grande São Paulo, que além da USP leciona na Universidade Metodista. Ele fala sobre os aspectos sociológicos da influência das seitas pentecostalistas sobre as sociedades urbanas das grandes cidades brasileiras, constituindo uma forma de expressão de cultura popular.
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O pentecostalismo, este controvertido filho do protestantismo, no Brasil se configura como uma das formas mais características de religiosidade popular na medida em que entre seus adeptos sempre contou em sua maioria com forte adesão de elementos dos estratos mais marginalizados da sociedade: negros, favelados, migrantes, mestiços, norte/nordestinos, analfabetos e outros.

Neste sentido, o pentecostalismo vai representar aquilo que Marliena Chauí bem aponta: uma “(...) orientação para a conduta de vida, sentimento de comunidade e saber sobre o mundo, compensando a miséria por um sistema de “graças”: cura, emprego, regresso ao lar do marido ou esposa infiel, do filho delinqüente, da filha prostituída, do fim do alcoolismo. (...)”[1]

O significado de um “rebanho santo”, “povo escolhido”, grupo privilegiado que aderiu a uma proposta pela qual se reserva uma farta recompensa, uma compensação, a idéia propriamente dita de redenção está justamente no integrar um grupo distinto da grande massa social, liberto de todos os males demoníacos que pairam sobre o “comum dos mortais”, como os vícios, os prazeres imorais, as tentações pecaminosas oferecidas pelos espetáculos em geral e assim por diante.

Decorre desta postura uma banalização daquilo que se considera a demonização do cotidiano. O demônio passa a estar presente nos mínimos atos e fatos do dia a dia. Ele torna-se o inimigo sempre à espreita que tem especial predileção pelas “ovelhas do rebanho santo de Cristo”, já que os “outros” (os não-pentecostais) já lhe pertencem. Sempre a postos para atacar não desperdiçando uma oportunidade sequer, rei da astúcia que se usa das mais variadas possíveis e imagináveis artimanhas e disfarces, Satanás desfere incansávelmente, dia e noite seus incessantes ataques contra os escolhidos de Jesus.

O vizinho que ouve uma música em volume alto, a pessoa que compartilha o assento do ônibus que involuntariamente exibe uma revista com um anúncio que mostra uma mulher seminua, a atendente de comércio que exibe um decote um pouco mais ousado, a novela que incita a relações de traição, o filme que exibe uma cena violenta, tudo isso ou até a simples fatalidade de um objeto cujo formato pode lembrar um órgão genital, tudo isso constitui ataques de Satanás aos filhos de Deus, e se tornam significantes de uma confirmação cotidiana de uma santidade adquirida, reconfirmação da dignidade e garantia de redenção conpensatória da salvação com a vida digna no além, no paraíso dos redimidos onde Cristo reunirá a sua Igreja.

Nervosismo, dores de cabeça, insônia, medo, desmaios, desejos de suicídio, doenças cujas causas os médicos não descobrem, visões de vultos, audições de vozes, vícios e depressão, todos estes sinais representam segundo o pentecostalismo a possessão demoníaca.

Considerando que estes fenômenos, em especial nas grandes cidades podem tranquilamente ser considerados triviais e comuns, frutos mesmo do estresse urbano, qualquer ser humano seria um possesso em potencial.

Por isso tudo – uma exagerada visão banalizada de demonização do cotidiano, e a necessidade de afirmação da salvação crística, redenção com a recompensa de uma vida melhor, é que decorre um outro significado de importante reflexo na cultura urbana contemporânea: a guerra santa.

De discurso intransigente, o pentecostalismo firma-se como um exército de cristãos prontos a combater pela causa de Cristo as “agências de Satã” que se fazem presentes no mundo.

Concorrentes no mercado da oferta de soluções materiais via promessa de força espiritual, as religiões mediúnicas, em especial os cultos afro foram assim estigmatizados como a materialização imediata destas agências satânicas presentes no mundo.

A história deste confronto já registrou diversos episódios e práticas de agressão do pentecostalismo aos cultos afro, uma perseguição antiga, que começou com a igreja católica, passou pelo estado e no século XX consolidou-se nas seitas pentecostalistas, reforçando-se a partir da década de 80.

Invasões de templos, difamações, interrupções de cultos, literatura agressiva, discurso depreciativo, utilização de rádio, TV e mídia impressa para campanhas de difamação e tudo o mais são apenas algumas das ações agressivas mais comuns que se tornaram significantes da guerra santa movida pelos pentecostais contra os cultos afro.

Nos anos 90, tal idéia se reforçou com o advento da Teologia do Domínio que grosso modo trata de organizar os cristãos no combate ao demônio que se organiza distribuindo seu poder a subalternos, que se fazem representar segundo a cultura local em distribuição regional hierarquizada. Em outras palavras, a administração demoníaca brasileira estaria a cargo dos Exus, Caboclos, Pretos Velhos, Orixás e demais entidades do panteão dos cultos afro, subalternas do maioral dos demônios, Lúcifer. Esta Teologia do Domínio contou com grande adesão das denominações neopentecostais, e também do protestantismo tradicional.

Assim, as camadas populares urbanas que tiveram ao seu dispor toda uma gama de significados que lhes conferia uma série de funções dentro do papel de povo escolhido a caminho da redenção numa nova vida que viria após o grande dia do juízo onde se faria a justiça de Deus e não mais a dor da exclusão social seria o pesado fardo a ser transmitido de geração para geração.

[1] Chauí, M. / Notas sobre cultura popular in Revista Questão Popular, Kairós, São Paulo, 1980. p. 18.
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Douglas Gregorio - ECA-USP
Dezembro de 2004.

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