domingo, dezembro 26, 2004

O Salão Dourado

Resumo - o texto a seguir narra a participação de Irineu Gabriel da Luz, antropólogo, num exótico ritual de origem xamânica, onde se vivenciou uma profunda e inigualável experiência de expansão da consciência através do uso das Plantas do Poder.

Eram aproximadamente vinte e duas horas quando decidimos nos dirigir para o lugar onde antigamente funcionava a casa do feitio. Caminhamos em fila indiana por uns 300 metros mais ou menos. Estava muito escuro e nossas poucas lanternas tornavam aquela caminhada uma aventura.

Passamos pela antiga igreja. Para mim foi um impacto. Fui tomado por tristeza ao vê-la sendo utilizada como depósito. Ali eu vi e aprendi coisas tão exóticas e bonitas, vivi experiências profundas e conheci pessoas muito bacanas. As coisas nesta vida mudam, e temos de aprender a respeitar isso. Logo, eu não podia me deixar tomar por aquela tristeza. Aquela noite seria muito especial, e isso poderia me atrapalhar.

Chegamos no local planejado. Começamos com os preparativos: dispomos as cadeiras em círculo, montamos o altar. O lampião a gás deu-nos trabalho, acabamos desistindo dele. Por felicidade, eu tinha uma lanterna com diversos recursos, entre eles uma luminária fluorescente que substituiu o lampião à altura.

Estávamos em oito pessoas, nosso anfitrião, seu jovem parceiro, nosso amigo o fiscal dos trabalhos de antigamente que eu reconheci ao chegar, e meu amigo basco, além dos demais: outros jovens e alguns necessitados que eram atendidos pelos préstimos terapêuticos do nosso anfitrião.

Nas horas que antecederam o trabalho nosso anfitrião nos falara sobre suas experiências com estados alterados de consciência e percepção quando esteve pesquisando tradições indígenas e populares na Amazônia, Peru, México e América Central e Caribe. Procurava dividir conosco um pouco de toda sua vasta bagagem cultural.

Depois de acaloradas discussões que se estenderam até os minutos de excitante clima que antecediam a abertura dos trabalhos daquela noite, dado momento nosso anfitrião interrompeu as empolgadas discussões e convidou-nos à concentração serena. Era chegada a hora.

Primeiramente, o firmamento dos pontos: Ogum e Oxum em oposição no local, norte e sul, masculino e feminino, yin e yang, a dualidade cósmica. Como diria Heráclito: “dos contrários nasce a mais bela harmonia”.
Fui convidado pelo nosso anfitrião a junto de outro amigo firmar o ponto de Oxum.

A fogueira estava acesa. Um agradável cheiro de pinho e ervas aromáticas aos poucos foi tomando conta do ambiente.

Nos reunimos num barracão aberto que de um lado possuia uma série de cadeiras dispostas lado a lado, e em frente de cada uma, mesinhas de tocos que antes eram utilizados para a bateção dos cipós. Eram separadas do ambiente por uma baixa mureta, e do lado oposto havia uma seqüência de cavidades no solo arredondadas e revestidas, do tamanho aproximado de um barril de chope, encabeçadas por um crucifixo de dupla trave horizontal popularmente conhecido como “Cruz de Caravaca” – um dos mais significativos símbolos da doutrina que ali reinava, cujo significado seria a segunda volta de Cristo. Tais cavidades seriam as fornalhas nas quais se preparava a bebida, agora desativadas.

Nos posicionamos em círculo no espaço entre as fornalhas e os tocos de bateção.

Silêncio. Fazia frio. Todos muito bem agasalhados, enrolados em cobertores.

Defumação. Um bastão de incenso foi aceso pelo nosso anfitrião, que se utilizando de passes ao estilo xamânico preparava não só ambiente, mas também cada um de nós através duma espécie de lavagem áurica.

Nosso amigo ex-fiscal assumia a função de acólito, zelando por todos os detalhes para que os trabalhos transcorressem da melhor forma.

Instrumentos xamânicos e o perfume que emanava da fogueirinha harmonizavam as vibrações do ambiente em meio à fria floresta.

- Qual motivo nos trouxe aqui?! O saber?! Saber por saber nada resolve. Vamos refletir com calma, preparar nossa mente para o que nos espera a partir de agora. Somente assim seremos melhores do que somos neste momento. Só assim alcançaremos a cura – era o que dizia nosso anfitrião, com a voz serena de quem assumia a direção dos trabalhos.

Orações, mantras, sibilos e sinais sonoros.

Nosso amigo ex-fiscal se dirige ao altar. Com reverência e respeito, estende as alfaias e empunha um pequenino copo de cerâmica vitrificada. Sacode a garrafa. Deita uma quantidade da bebida no copo. Em sentido horário as pessoas começam a reverentemente serem servidas.

Bebi com reverência e compenetração – em minha mente, minha alma e minha consciência, pedi proteção e pedi licença para integrar a egrégora que estaria sendo evocada naquele momento.
Voltamos a nos sentar. Novos mantras. Concentração.

O Deus dos mil nomes – respeitosamente evocado no início dos trabalhos.
Vagarosamente, uma sensação de leveza começou a me envolver. Uma prazerosa sensação de estar interagindo de forma mais íntima com os elementais da natureza começava a tomar conta de mim. Visão mais apurada. Começava a visualizar com facilidade a aura dos objetos. A floresta a nossa volta, o jogo de luz e sombras, arbustos e árvores configuravam um surrealista quadro que passavam a assumir um novo sentido, muito mais interessante. A cada movimento das minhas mãos e de objetos que me circundavam, um lisérgico rastro purpurinado se descortinava diante de minha visão. Suavidade, prazer, elevado estado de concentração, olfato, paladar e audição apurados.

Mantras, concentração, elevação de vibrações. Harmonia.

Creio que cerca de uma hora depois, os mantras foram interrompidos.

O clima de concentração já era forte, intenso.

Nosso amigo fiscal se dirige novamente para o altar. Com a mesma reverência anterior, sacode agora outra garrafa e o ritual de distribuição da bebida se repete.

Gosto fortíssimo, desagradável. Desde há mais de dez anos, quando então experimentei pela primeira vez aquela enigmática bebida, eu não duvidava que era mágica e poderosa.

Sentamo-nos, retomamos a concentração introspectiva e a entoação dos mantras. Frio. Cânfora e ervas aromáticas na fogueira ajudava a manter o equilíbrio. Luzes apagadas.
Dado momento, vi-me viajando num escuro espaço à velocidade da luz quando então entrei num grande salão dourado. Este salão reluzia de tal forma que eu parecia estar dentro do próprio sol, como que envolto numa caixinha lapidada do mais nobre metal. Agora luz, muita luz.
Um homem com uma expressão muito serena se aproximou sorrindo. Tive a impressão de conhecê-lo há milênios.

-Você está prestes a iniciar a batalha decisiva na busca do seu verdadeiro eu. Não será fácil. Está disposto a continuar?

-Não vim até aqui para desistir! – respondi.

-Pois bem, então que a luz esteja contigo. Não será fácil, mas não se preocupe porque eu estarei a seu lado em todos os momentos. Prepare-se!

Como que pilotando uma nave que seria meu próprio corpo astral, fui projetado em incrível velocidade para fora daquele salão reluzente.

Procurava a todo custo controlar a velocidade e a direção daquela nave, mas meus esforços eram inóqüos. Temia cair nos abismos que eu sobrevoava, neles mergulhava a velocidades incríveis sem saber o que eu acharia ali, temendo me estatelar contra uma montanha, uma muralha, contra paredes que nunca apareciam senão no meu temor.
Sentia a pressão dentro dos meus ouvidos, uma energia que enchia meu corpo astral como uma bexiga prestes a explodir, se expandindo em proporção cada vez maior, causando sensações por vezes desagradáveis.

Havia energias por serem queimadas que me impulsionavam quer eu quisesse, quer eu não quisesse. “A força não pode não se efetivar” dizia Nietzsche.

O meu temor era o de justamente não poder controlar aquelas forças. Por vários momentos estive à beira do desespero, cheguei a pensar que eu iria perder totalmente o controle, começaria a berrar. De fato, eu me debatia na cadeira, sacudia a cabeça, gesticulava como louco sem controle, pronunciava palavras desconexas em vários idiomas.

Eu já havia tido contato com a bebida várias vezes, mas aquela ocasião estava sendo diferente de todas as outras; sim, cada vez que se tem contato com a bebida se desenvolve uma situação única, mas aquela em especial estava sendo a mais intensa, a mais enigmática, pois nunca antes havia tido a sensação ameaçadora de perda de controle.

O ritmo dos mantras levava-me como que ao sabor de marolas do mar.

No fundo eu tinha uma consciência, e esta estava sob controle. Sabia que deveria me conter, me esforcei, mas não conseguia. Sabia que eu deveria manter meu equilíbrio, minha serenidade, mas parece que ainda não seria naquele momento que eu o conseguiria. Fiz várias tentativas de retornar ao salão dourado, de entrar em contemplação serena, de controlar aquelas forças todas.

Dado momento me desfiz dos agasalhos. Sentia muito calor. Suava.

O diretor dos trabalhos interrompeu o que estava sendo feito e convidou a todos para entoar novos mantras, agora todos de pé em torno da fogueira. Era um novo desdobramento do desenvolvimento das técnicas de concentração.

Em parte eu fui favorecido pela medida, porém, fui subitamente tomado por uma violenta rejeição orgânica à bebida. Retirei-me do círculo e tentei vomitar sem sucesso: meu estômago modificado não permitia. Isto me provocou um desconforto grande, mas logo passou. Desde meu primeiro contato com a bebida, era a primeira vez que eu sofria este tipo de reação.

Voltamos, sentamos novamente. Aos poucos eu ia recobrando o estado normal de percepção. Neste momento, vejo o velho amigo ex-fiscal reverencialmente volta-se para mim sorrindo, transparecendo muita luz e bondade, bondade que reinava na egrégora daquele trabalho. Com feliz e acolhedor sorriso revigorante, oferecia-me novamente a bebida.

Cheguei a pensar em recusar, mas, como eu havia dito, não tinha chegado até ali para desistir. Além disso, percebi que era oferecida por ordem do nosso anfitrião. Diretor dos trabalhos, com certeza sabia o que estava fazendo, logo, havia um propósito justo e positivo para mim naquela atitude, seria negativo recusar. Com alegria e coragem, levantei-me e me dirigi até o sorridente ex-fiscal junto ao altar. Bebi.

Voltei para meu lugar, sentei-me novamente. Concentração, mantras entoados. Convites, vozes de comando. Meu anfitrião agora se preocupava mais comigo e em meio aos mantras dirigia-me gestos e vozes de comando entoadas musicalmente, o que era muito agradável e me auxiliava a conduzir meu trabalho pessoal.

Aos poucos fui novamente retornando às minhas tarefas astrais – a responsabilidade na condução da nave. Novamente os abismos. Novamente os olhares furiosos e ameaçadores de monstros e seres de outras dimensões. O frio, o gelo, o escuro. E eu encarregado de vencer aquele longo vale gelado, conduzindo a minha nave, viajando em velocidades muito superiores às da luz. O impacto sobre meu corpo astral era fortíssimo. Passava a compreender que os valores espirituais seriam o combustível, o material, os elementos constituintes daquela nave, e que conforme a solidez de sua construção eu conseguiria chegar no meu destino de forma cada vez mais consolidada. Percebia o quanto o amor e sentimentos construtivos de combate à negatividade como ódio, rancor, inveja e tudo o que possa a estes se assemelhar seria justamente o que eu deveria buscar.

Mas eu ainda não estava preparado.

Em todos os momentos pensava na mulher que eu amo. Era a maior força que eu podia sentir.

Abismos. A nave subia e descia, virava aqui e acolá, sem rumo, sem equilíbrio, e por mais que eu me esforçasse em telepaticamente manter a reta direção, eu nada conseguia.

Eu me debatia na cadeira, pronunciava palavras desconexas em vários idiomas, soluçava, arrotava, o cheiro das ervas e do pinho passaram a me incomodar, mas desejava o cheiro da cânfora que ajudava para com o equilíbrio. Por momentos pensei que os demais estariam julgando meu desequilíbrio, mas todos os que estavam ali de certa forma já tinham realizado a mesma viajem que eu, e sabiam o quanto era importante eu passar por aquilo, e compreendiam minhas dificuldades. E viam a beleza e o sentido pedagógico que existia por detrás de tudo aquilo.

Novamente fomos convidados a ficar de pé. Novos mantras.

Lembrei-me de um destes mantras, o primeiro que se gravou em minha memória através de uma reportagem de TV sobre a bebida que eu tinha visto há muitos anos: “Confio no sol, confio na lua, confio em meu mestre que é o dono do Poder!”. Belíssimo.

Novamente convidados a sentar.

Dado momento o anfitrião interrompe e pergunta ao basco e também para mim se agüentariamos continuar. –É lógico! – corajosamente respondi – está difícil, mas vim aqui para isso.

Continuamos. Mantras entoados.

A força da bebida foi me deixando aos poucos. Vagarosamente fui recobrando o estado normal de percepção. Nos reunimos em torno da fogueira, agradecemos a forte e positiva egrégora que nos envolveu naquela noite e entoamos em coro um recital de orações: pai-nosso, ave-maria, salve-rainha e outras, por várias vezes. O anfitrião, com belas palavras sábias encerra os trabalhos e todos nos cumprimentamos em confraternização.

Por algumas horas ainda permaneci enxergando rastros lisérgicos purpurinados nos objetos em movimento. Profundidade, a quebra de uma grossa casca exterior. Talvez isso tenha ocorrido naquela noite, uma casca a qual vinha sendo desgastada pela bebida ao longo dos mais de dez anos nos quais com ela estive em diversas ocasiões.

Este encontro com meu mentor neste grande salão dourado foi um ponto de partida, sem dúvida. Agora, a viagem real começou efetivamente. Mas eu ainda não sou um bom piloto. Ainda preciso praticar, preciso adquirir o equilíbrio que faltou naquela noite. Enfrentar sem medo os mergulhos nos abismos, seguro de que não irei estatelar-me contra parede alguma.

Ser senhor da minha nave até que um belo dia eu possa pousá-la no porto seguro do Dono do Poder. Que assim seja.

Irineu Gabriel da Luz
Primavera de 2004.

Um comentário:

Anônimo disse...

Acredito que o Pai Celeste estava muito inspirado ao colocar-nos um no caminho do outro. Sou muito feliz por ser sua companheira, companheira de uma pessoa culta com quem tenho muito a aprender e que enriquece o meu dia a dia.
Um beijo carinhoso,
Maichí